Um dia no laboratório do André Freitas

Por Leila T. Shirai

Tão logo após chegar ao laboratório do Prof. André V. L. Freitas, ficou claro que a qualidade do trabalho desenvolvido aqui tinha raízes anteriores ao tempo dele. O programa de Pós-graduação em Ecologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) é um dos melhores no país. Sua comunicação com o Departamento de Botânica contribuiu estruturalmente para políticas públicas e financiamento científico no estado de São Paulo. E, mais próximo do André, seu mentor, Prof. Keith S. Brown Jr., trouxe uma quantidade inimaginável (literalmente, mais de 200.000 indivíduos) de borboletas de centenas de lugares da América do Sul, muitos dos quais nunca foram amostrados antes e que hoje não possuem mais florestas – um esforço corajoso em tempos que a internet não existia, e os telefones mal tinham sinal na selva. Brown realizou “Eco-evo-devo” antes de o termo ser cunhado, com sua visão de ecologia química e um profundo entendimento da importância do conhecimento básico (taxonomia, sistemática, descrições morfológicas) para abordar grandes perguntas. Essas características foram herdadas pelo André, que lidera hoje o Laboratório de Ecologia e Sistemática de Borboletas.

A paixão do André pela natureza começou quando ele era pequeno, e floresceu para as borboletas através de outro de seus mentores: Ronaldo B. Francini. Quando o André tinha 16 anos, eles iam à campo na Serra do Mar, o maior remanescente de Mata Atlântica, no litoral de São Paulo; trabalho que resultou em sua primeira publicação científica quando ainda era aluno de graduação da Unicamp. Desde então, ele reúne quase todas as atividades científicas e de extensão usando borboletas e mariposas (Lepidoptera) como modelos, tocando várias pessoas e encantando-as com suas adoradas borboletas. No momento em que escrevo (junho de 2018), ele já havia orientado 29 monografias, 16 dissertações de mestrado (+ 3 em andamento), 9 teses de doutorado (+ 3 em andamento), tinha mais de 200 publicações incluindo 4 livros, foi revisor de 55 jornais científicos, lecionava na graduação e pós-graduação, foi Chefe do Departamento de Zoologia por 8 anos, toca flauta (em uma banda renascentista chamada Zebu Trifásico), e recentemente começou a investir em filmes de divulgação científica.

Como ele faz isso? Ele estudou borboletas no campo, em museus e na literatura por décadas, seu cérebro é uma rede, ele é uma pessoa que multi-tarefa, é rápido e inscisivo; aqui dizemos que, quando ele passa, parece que um furacão nos atingiu. É de deixar tonto, mas vale a pena. O André possui um profundo conhecimento sobre vários aspectos da vida das borboletas – não é à toa que ele é reconhecido como um dos maiores especialistas em borboletas do mundo. Mas, ao contrário de muitos cientistas, ele ainda é apaixonado pelo que faz, e se preocupa com as pessoas. Assim, muitos daqueles que trabalharam com ou para ele desejam continuar fazendo, o que o tornou um epicentro de cientistas e amadores que estudam borboletas neotropicais. Além disso, sua humildade o torna sempre aberto a novos campos ou idéias. E ele confia em nós, o que nos dá liberdade de moldar nossas próprias linhas de pesquisa (embora aprendendo muito com os erros!). E bem, suas piadas poderiam ser melhores, mas ninguém pode reclamar de um ambiente leve e engraçado na aridez por vezes encontrada no ambiente acadêmico.

Embora o laboratório tenha duas linhas de pesquisa principais (ecologia e sistemática), há também outros projetos, como o meu, sobre evo-devo de padrões de cor alar nas borboletas, e os de outros dois pós-doutorandos, sobre a base química que estrutura interações multi-tróficas entre plantas, herbívoros e parasitoides. Praticamente todos os membros do laboratório estão envolvidos em trabalho de campo, de laboratório e na preparação de amostras para a coleção do Museu de Zoologia da Unicamp, produzindo dados morfológicos e moleculares para responder às nossas perguntas. Um dia típico no laboratório inclui: alguém montando borboletas, alguém compilando listas de espécies ou dados de distribuição, alguém folheando catálogos para pré-identificar espécies (confirmadas pela enciclopédia na cabeça do André), outro medindo ou fotografando no estereoscópio, a rotação daqueles que criam um grande lote de ovos novos, um grupo organizando a próxima viagem de campo, os estressados escrevendo um manuscrito ou suas teses/dissertações, e vários de nós batendo na porta do chefe para resolver todos os tipo de assuntos.

É bastante freqüente abrir a porta e encontrar o André usando sua lupa de cabeça, cortando plantas hospedeiras ou limpando larvas. A criação de imaturos revela semelhanças de histórias compartilhadas quando os adultos não mais as apresentam. Quando duas borboletas adultas se imitam, cogitamos que elas estão relacionadas. Mas quando criamos os estágios de larva e pupa, e vemos que uma delas se assemelha a outro grupo, descobrimos onde na árvore da vida essas espécies podem realmente pertencer. A criação de imaturos pelo André e pelos alunos que aprenderam com ele já contribuiu para a descrição dessas fases de vida ocultas de mais de 100 espécies neotropicais.

Outra grande contribuição para a ciência, que acontece diariamente no lab, é a descrição de espécies novas e a organização das já descritas. Existem cerca de 20.000 espécies de borboletas no mundo, das quais mas de 3.000 estão no Brasil. As borboletas não são apenas belas, elas são ótimos modelos de estudo para questões ecológicas, evolutivas e de desenvolvimento, e têm sido usadas como tal há séculos. Elas também são bons bio-indicadores, refletindo os tipos de ambiente que habitam e as mudanças que ocorrem neles. Assim, as borboletas são relevantes para a conservação, sendo um dos poucos grupos emblemáticos de invertebrados que auxiliam na proteção dos biomas brasileiros. Para servir bem a todos esses propósitos, é essencial saber quantas espécies existem, como elas diferem umas das outras, onde estão e o que fazem. Quanto mais soubermos da intimidade das borboletas, melhor podemos prever cenários para um futuro tolerável. Mas aqui sua beleza ajuda, porque os padrões multicoloridos das asas e do corpo atraem a atenção de pessoas que podem se interessar em aprender todas as outras coisas (científicas) que descobrimos com elas – talvez isso já tenha acontecido com você! Quando corremos atrás delas com a rede entomológica, não estamos apenas dando uma de Bob Esponja, estamos buscando revelar os segredos da natureza e descobrindo maneiras de mantê-la tão impressionante e misteriosa como ela é.

Leila T. Shirai
Bolsista de pós-doutoramento FAPESP 2014/23504-7
“A contribuição da hierarquia do desenvolvimento na diversificação morfológica”
English version: A day in the life of Freitas’ lab
Veja também: A day in the life of a butterfly lab